A luta em memória às vítimas de acidentes e doenças do trabalho
passa pela luta contra a terceirização
Maria Maeno – Pesquisadora da Fundacentro – Ministério do
Trabalho e Emprego
Histórias de dois brasileiros que nasceram nos anos 1990.
Fabio
Hamilton Cruz era um entre os 12 milhões de trabalhadores terceirizados
existentes no Brasil. Há aproximadamente um ano, no dia 29 de março de 2014,
aos 23 anos, ele morreu trabalhando em um dos canteiros das obras da Arena
Corinthians, um dos vários estádios que receberam os jogadores da Copa do
Mundo. Prestava serviço para a WDS Engenharias, contratada pela empresa Fast,
que por sua vez era contratada pela Odebrecht.
As
investigações iniciais haviam concluído, como quase sempre, que a culpa
era da
vítima, que havia sido negligente. Não usava cinto de segurança e despencou de
uma altura de 8 metros, segundo a Fast e de 15 metros, segundo o Corpo de
Bombeiros. Depois da inspeção do Ministério do Trabalho,
constatou-se
que o jovem não usava mesmo o cinto de segurança, pois como
ele era
curto, o seu uso impedia a execução do trabalho para o qual havia sido
designado.
A obra não tinha tampouco rede de contenção, que só depois da tragédia, foi
instalada. Após o acidente, apenas a área onde havia caído foi isolada, mas os
trabalhos continuaram normalmente.
Essa
morte só teve repercussão até na grande mídia porque estavam envolvidas obras
da Copa do Mundo de 2014. Do contrário, seria apenas mais uma morte na
indústria da construção civil, responsável por 16,5% dos acidentes de trabalho
fatais registrados em 2013 no Brasil.
Esse
episódio é emblemático do que ocorre no mundo do trabalho, no qual o
trabalhador trabalha em condições precárias, sob um ritmo intenso, tão
perto
de nossos olhos mas tão longe dos nossos corações e mentes. Sequer a
sua
morte é motivo para que as obras sejam interrompidas, a não ser por determinação
legal, pois as mortes no trabalho são tratadas de forma impessoal, com claro
recorte de classe. As mortes da construção civil, do setor
elétrico,
do setor petroleiro não despertam interesse especial, ao contrário de vítimas
de tragédias que envolvem acidentes aéreos ou incêndios em casas noturnas. É
como se a sociedade assumisse que morrer no trabalho faz parte
do
jogo, e que morrem aqueles que escolhem se submeter a riscos ou não tomam os
devidos cuidados. Ignora-se que a maioria dos trabalhadores não
tem
chance de escolher o seu trabalho.
As
últimas notícias que tivemos após o ocorrido diziam que a mãe de Fabio havia
entrado com pedido judicial de indenização. Muitos dos que leram
essa
notícia podem ter pensado que, afinal dinheiro não traria o filho querido de
volta.
Mais um recorte de classe, pois ações contra empresas aéreas após desastres
aéreos são entendidas e apoiadas amplamente. Nada trará de volta
os
sonhos de Fabio. E ele tinha sonhos? Embora ninguém tenha sequer mencionado na
mídia, certamente eles os tinha, como qualquer jovem de 23
anos de
idade. Talvez tenha contado alguns deles à sua mãe. Talvez não. Sheila (nome
fictício), filha única de empregada doméstica, cresceu ouvindo de sua mãe que
ela tinha que ter um futuro melhor. Nada de fazer faxina, lavar roupas e
banheiros alheios. Para isso tinha que estudar e foi o que
Sheila
fez. Quando completou o ensino médio, começou a trabalhar em uma empresa de
teleatendimento que prestava serviço a um banco. Saía bem vestida de sua casa,
na periferia de São Paulo, para orgulho de sua mãe.
Atendia
um cliente após o outro. Alguns eram gentis, já outros gritavam protegidos pelo
anonimato e pela distância. A todos tinha que “sorrir com a voz”, mesmo que o
coração estivesse apertado dentro do peito. Mas valia apena, pois com o salário
dava para pagar apertado uma faculdade de direito
particular.
Não entendia porque tanta gente desistia e saía da empresa. O tempo passou,
todos-os-dias chegando tarde em casa, ouvindo grosserias de
clientes
e não conseguindo resolver suas dúvidas, tendo que atender um após
o
outro, sem descanso e no meio de tudo isso, tendo que vender grande número de
seguros no mês ... quem é que consegue vender seguro a um cliente que está
exasperado por um problema qualquer na conta corrente?
Sheila
passou a sonhar que não conseguia bater as metas, não tinha mais vontade de
sair de casa nos finais de semana, e depois sequer ao trabalho tinha força para
ir. A mãe, preocupada em ver a filha sem o brilho que tinha nos olhos, levou-a
ao médico e ouviu dele o diagnóstico: depressão. Mas por que,
se não
lava roupas e banheiros alheios, sai de casa bem vestida e não é chamada de
empregada doméstica? Se precisar ficar afastada por mais de um
mês,
vai ter que ser periciada para receber auxílio-doença do INSS, mas pode
ser
periciada por médico contratado pela empresa, porque depois da medida provisória
664 de 30 de dezembro de 2014, o perito pode ser contratado pela empresa.
Então, mesmo doença adquirida no trabalho dificilmente vai ser reconhecida como
doença ocupacional. Durante o afastamento do trabalho, não vai ter
complementação de salário, como o bancário funcionário do banco
tem,
pois só presta serviço para o banco; não é bancária. Quando voltar para o
trabalho,
estabilidade não vai ter, ao contrário do bancário que, se ficar afastado por 6
meses não pode ser demitido nos primeiros 2 meses após o retorno ao trabalho.
Se
continuássemos daria para completar mais de cem histórias rapidamente, mas a
ideia não é essa.
É fazer
um exercício de imaginação. Se Fabio tivesse nascido em um país que prezasse
pela vida dos cidadãos, ele comemoraria seus 24, 25, 26 anos e muito mais. E
Sheila ... será que poderia continuar saindo bem vestida
de casa
para trabalhar enquanto cursasse a faculdade?
Em nome
de Fabio e Sheila, que simbolizam tantos trabalhadores brasileiros e a dor de
tantas famílias, temos que sonhar e lutar para que situações como as deles não
mais existam. Estudos mostram que acidentes e doenças são mais frequentes entre
os terceirizados. 2015 é o ano da luta contra o Projeto de Lei 4330, contra a
terceirização, quarteirização ... quem é
responsável
mesmo?
(Texto recebido pelo CEREST por Maria Maeno)
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